Estendeu-se uma fina rachadura pela parte externa
do vidro. Quando tentou tocá-la vindo do
quarto não conseguia sentí-la, pois não atravessara para seu lado. Colocou a
mão por fora da janela, mas logo parou com medo de se desequilibrar e cair. Via
a imagem por trás da rachadura: a avenida onde morava e mais especificamente o
outdoor, tela de disposições intercambiantes, simulacro de todos os sonhos,
então levemente arranhado pelo seu vidro-lente.
Foi invadido por imagens de seus pais, as fotos
apaixonadas que mandavam do Araguaia, os longos debates regados a vinho barato,
recitando em voz baixa os ideais de estudante aprendidos em livros europeus. O
sonho galopante pintando de vivo aquele país de sangue em porões, como uma
plantação nascendo em terra vermelha e sem chuva. Sua juventude vinha à mente: as
grandes greves, as fugas da polícia, as noites em claro discutindo a dívida
externa e os casais do partido, os emocionados choros após os discursos de
Lula, aí tomado como busto. Antes ainda, os jogos de futebol nas ruas vazias devido
ao preço hiperinflacionado do combustível junto aos meninos do bairro que não
tinham pais que falavam francês, nem sabiam o que era leninismo, mas que amava,
conterrâneo. Acessava o mar de memória, fantasia e idealização, normalmente só
visível antes de dormir, quando este se esparramava frente aos olhos fechados.
E pensar que tudo isso só acontecia devido à
trincada abrupta e sutil que acometera sua vidraça. Ah! O embaçado necessário a
toda vista verdadeira, como a menina que tirava os óculos para melhor ver. Por
um segundo conseguiu focar somente aquele risco translúcido e o fundo se
desfigurava em uma torrente espasmódica e miraculosa de cores dançantes,
amarelos fluorescentes, azuis bravos, laranjas senis. Sua boca sorria
levemente, crente que no mundo ainda havia belezas - há algo mais confortável
ao solipsista do que o amor as ilusões de ótica? Mas logo a imagem trocava e ao
fundo voltava a ver a linda moça negra em vestido de gala, acompanhada por seu
namorado branco de smoking, o cálice de vinho tinto sobre a tolha alva , tudo
bem disposto na sofisticada propaganda de hotel de luxo.
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