domingo, 22 de setembro de 2013

Avenida em São Paulo

Estendeu-se uma fina rachadura pela parte externa do vidro.  Quando tentou tocá-la vindo do quarto não conseguia sentí-la, pois não atravessara para seu lado. Colocou a mão por fora da janela, mas logo parou com medo de se desequilibrar e cair. Via a imagem por trás da rachadura: a avenida onde morava e mais especificamente o outdoor, tela de disposições intercambiantes, simulacro de todos os sonhos, então levemente arranhado pelo seu vidro-lente.
Foi invadido por imagens de seus pais, as fotos apaixonadas que mandavam do Araguaia, os longos debates regados a vinho barato, recitando em voz baixa os ideais de estudante aprendidos em livros europeus. O sonho galopante pintando de vivo aquele país de sangue em porões, como uma plantação nascendo em terra vermelha e sem chuva. Sua juventude vinha à mente: as grandes greves, as fugas da polícia, as noites em claro discutindo a dívida externa e os casais do partido, os emocionados choros após os discursos de Lula, aí tomado como busto. Antes ainda, os jogos de futebol nas ruas vazias devido ao preço hiperinflacionado do combustível junto aos meninos do bairro que não tinham pais que falavam francês, nem sabiam o que era leninismo, mas que amava, conterrâneo. Acessava o mar de memória, fantasia e idealização, normalmente só visível antes de dormir, quando este se esparramava frente aos olhos fechados.

E pensar que tudo isso só acontecia devido à trincada abrupta e sutil que acometera sua vidraça. Ah! O embaçado necessário a toda vista verdadeira, como a menina que tirava os óculos para melhor ver. Por um segundo conseguiu focar somente aquele risco translúcido e o fundo se desfigurava em uma torrente espasmódica e miraculosa de cores dançantes, amarelos fluorescentes, azuis bravos, laranjas senis. Sua boca sorria levemente, crente que no mundo ainda havia belezas - há algo mais confortável ao solipsista do que o amor as ilusões de ótica? Mas logo a imagem trocava e ao fundo voltava a ver a linda moça negra em vestido de gala, acompanhada por seu namorado branco de smoking, o cálice de vinho tinto sobre a tolha alva , tudo bem disposto na sofisticada propaganda de hotel de luxo.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

7500 toneladas de querosene

I
7500 toneladas de querosene no tanque.
Vôo sobre mares e morros,
Como se a luz emanesse
Rompendo todas as cascas marrons
Que cercam meus músculos.
(Hollywood)

Isso não resolve nenhum problema.
Em um rasante tão rápido
Que nada vejo,
Gero um insuportável vento
Aos pequenos suicidas
Que dali debaixo
Continuam me observando.

II
Como deixei que esse fluxo quente
Fosse desvalorizado?

Por que não gera instantâneos?
Por que não é compatível com impressoras multifuncionais?
Por que mão gera maquetes?

7500 toneladas de querosene,
Combustível para toda uma vida
Despejados sobre o mar,
Para sonhar um plano de vôo
(Enquanto o avião despenca)

A letra morta está morta,
Voltemos à vida.

Adendo para mim:
Importante lembrar que para a vida convém usar todos os recortes e origamis possíveis da letra morta.